Ser um profissional de programação, engenheiro de software, arquiteto, developer, como quiser chamar, tem algumas características profissionais mais específicas, como:
- Exigir alto, diário e constante nível de trabalho mental;
- Comunicação frequentemente estruturada e muito uso diário de linguagem formal;
- Muita dedicação a estudos e projetos para se manter atualizado com novas tecnologias, métodos e frameworks;
- Longas jornadas imerso no digital e proximidade com eletrônicos.
Cada item destes que coloquei aqui sofre a implicação da convivência com crianças quando os filhos chegam durante esta curva ascendente de carreira, onde o espaço profissional está sendo duramente batalhado, não há reservas financeiras, e o mercado embora abundante, exige muito esforço para ser acompanhado.
Eu tive filhos muito cedo: Tenho na redação deste texto 31 anos, um filho de 9 anos e uma menina de um ano. Quando eu apresentei meu TCC da faculdade meu filho já era nascido, eu já tinha 4 anos de experiência profissional, sustentava minha casa, não tinha carro e decidi firmemente que seria um pai muito presente.
Sobre ter filhos mais tarde na carreira: Quando se tem filhos com a vida profissional mais estabilizada, com reservas financeiras, empregos sólidos, grande bagagem de estudo, eu acredito que os problemas sejam diferentes do que os que vou relatar aqui.
Uma criança exige muito mais que pensamento
Nossa longa capacidade mental é praticamente irrelevante para a criança pequena, só por agora com meu filho de 9 anos que começo a ver minha força intelectual sendo mais útil na nossa relação.
Nós, que somos muito fodas mentalmente, que frequentemente gostamos de eletrônicos, ficção científica, filmes elaborados, assuntos de alto nível intelectual, podemos atrapalhar muito as crianças com uma intelectualidade precoce.
Coisas como jogar vídeo game com o filho são muito perigosas para os pequenos em tenra idade.
Os pequenos exigem de nós outros movimentos que estão fora do nosso mundo obrigatório habitual, como mais passeios e tempo na natureza, o cozinhar, histórias simples, poesia, música. Para quem já tem esse background é mais fácil, para quem não tem são competências que precisarão de alguma forma aparecer na rotina.
É uma oportunidade de crescimento para nós, mas não é natural e passa a ser uma exigência da rotina com eles que não agrega na nossa evolução técnica embora consuma bastante dedicação.
A linguagem da criança é a do movimento
Qualquer computador mixuruca entende comandos simples muito mais facilmente que uma criança de 5 anos de idade.
Criança saudável não entende comando.
Criança saudável não tem a menor capacidade nem interesse em que as palavras tenham qualquer tipo de formalidade. Instrução é um conceito que só vai existir mais tarde.
O problema é que a maioria de nós, profissionais da área, passamos a maior parte dos nossos dias lidando com linguagem formal, com instruções de comando e ciclos muito curtos de tentativa e feedback.
Embora exista um aspecto de comunicação humana forte na nossa área, quase todo mundo se esforça de verdade para que a comunicação no ambiente de trabalho fique mais perto do formal.
Acho que a relação mais próxima que dá pra fazer com a criança é que ela é tipo os nossos usuários, vai usar o produto como ela quiser e não vai ler as mensagens de aviso não.
Criança entende ritmo e rotina. Aqui até temos um ponto positivo que é a rotina, estruturar uma boa rotina ajuda muito e somos bons nisso. Mas não é falada entende? A rotina na planilha não vai ser útil pra criança, ela quer é viver a rotina com você, se movimentar, ou não participar e você vai precisar insistir pacientemente nos movimentos até que ela entre no ritmo junto. É no fazer que a coisa acontece, no movimento, na presença e na música.
Cadê o tempo?
Lembro que certa vez passei um feriado de natal e ano novo estudando AJAX, muito tempo atrás. Foi fundamental para dar um salto na minha carreira de estagiário para CLT.
Quando terminei a faculdade, senti o alívio de que finalmente teria as noites para estudar coisas que me interessavam.
Isso não aconteceu. Já tinha o pequeno, mas não tinha a ideia do trabalho que significava uma criança em casa.
Finais de semana também não eram uma possibilidade, especialmente por trabalhar em regime próximo de 40 horas os finais de semana são a grande oportunidade para estar tempo de verdade com as crianças.
Onde então está o tempo para estudar uma tecnologia nova? Participar de uma tecnologia open source? Fazer um curso?
Existe o caminho natural de sacrificar tempo de família e com as crianças, sacrificar o financeiro e conseguir trabalhos com rotinas mais leves de até 30 horas, e sacrificar os prazeres pessoais entrando em uma rotina mais difícil de gestão do tempo e energia.
Ao longo destes 10 anos, eu usei estas três estratégias em momentos diferentes.
Sacrificar o tempo com as crianças e família foi a mais dolorida, embora às vezes seja necessária. Atualmente estou me preparando para ano que vem sacrificar mais a família por conta do desejo/necessidade de estudar inglês e de contratos de grande porte no trabalho para 22022. Mas é um planejamento para esse ano, sem a intenção que perdure para 2023 da mesma forma.
Sacrificar o financeiro encontrando trabalhos mais leves me ajudou muito em certos momentos, tive líderes muito dedicados a me ajudarem nestes processos. Após certo patamar de salário essa é uma escolha possível, quando aluguel, escola, comida e lazer já estão encaminhados. Aqui o mais difícil após alcançar um patamar mínimo é ver os colegas de profissão recebendo mais dinheiro, pois mesmo eu sendo uma pessoa boa de coração, a inveja às vezes me pega também. Outro elemento de pressão é que a nova geração vem forte e começa a naturalmente ameaçar posições de trabalho mais confortáveis, embora esse processo seja muito bom e saudável, para quem está tentando equilibrar os pratos da vida familiar, essa entrada no mercado de novos profissionais tem um impacto.
Sacrificar os prazeres pessoais funciona em tempos curtos e períodos específicos. Na continuidade o que percebi foi uma tendência à densificar a vida e ficar tão chato e mal humorado que o objetivo fim que era curtir tempo em família se torna algo pesado, denso e com maior propensão à brigas e acessos de irritação.
Parece existir uma quarta forma, mas ainda estou experimentando ela, que é tentar desenvolver uma mentalidade de atleta de alto rendimento, potencializando o aumento da vitalidade, desenvolver uma excelente disciplina com alimentação, exercício e sono. Se der certo, eu escrevo um dia.
Minha experiência é que é essas três estratégias de sacrifício precisam ser revezadas para não pesar demais, mas que em nenhuma hipótese, NENHUMA, devemos sacrificar nosso sono, exercício físico, tempo dedicado à Deus e valores pessoais. Porque sem saúde física tudo desmorona e sem um cuidado espiritual/moral, ficamos muito perto de cometer erros graves que podem afetar toda a trajetória.
Presença
Há algo sobre o mundo digital cada vez mais claro para mim.
A presença está onde a mente está.
Se estou na sala da minha casa, com minha filha engatinhando perto de mim, mas eu estou no notebook escrevendo este texto, o lugar onde eu estou é qualquer um, menos a sala da minha casa.
Nós, que trabalhamos com programação, quando entramos na solução de um problema, estamos presentes lá, não na casa onde estivermos. E cada vez mais com o Home Office, estaremos programando próximos de nossas crianças e crianças vão interromper, vão chamar, vão te ver fisicamente presente e achar que você está alí, embora não esteja.
Presença tem haver com atenção e as crianças (nós adultos também, mas eles mais), precisam dos nossos olhos, do nosso olhar, do nosso feedback constante enquanto eles descobrem o mundo. Isso desenvolve segurança e sensação na criança de ser vista e amada.
Não dá para contarmos como tempo com eles o tempo imersos nas telas. Não conta, não vale.
Cabe então alguns cuidados, como a mesa de trabalho do papai ou da mamãe programadora deve ser um lugar especial, um lugar cuidado e que a criança entende que é diferente, e quando se está nesse lugar, estamos trabalhando e não disponíveis.
Isso é importante para nós também termos a clareza que o tempo de trabalho é diferente do tempo da presença com os filhos e ajuda a aumentar nossa consciência dos esforços que serão necessários de organização da vida para que seja possível cuidar da família e ter sucesso profissional no longo prazo.
Colhendo tesouros
Não tenho nenhuma certeza se minha escolha de ser um pai presente e um marido pelo um pouco mais consciente da divisão de responsabilidades seja a melhor, não sei mesmo. Tenho conhecidos que focam mesmo no trabalho, e conseguem antes de mim dar condições materiais às suas familiares melhores que as que eu consigo. Eu de fato não sei se minhas escolhas foram as melhores.
E embora, como programador, eu tenha sentido claramente o impacto negativo da paternidade tão juvenil, é evidente que como homem e ser humano, há muitos tesouros.
Mas existem também tesouros profissionais valiosos, e estes tesouros profissionais que coletei eu vou compartilhar aqui como um incentivo para aqueles que assim como eu, precisam encarar esse desafio de serem pais jovens e estarem em uma profissão que exige tanto da nossa dedicação intelectual:
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Valorização da estabilidade. Versões LTS, plataforma estáveis, normas técnicas, tudo isso cresce em valor porque tem longevidade e é ótimo quando há pouco tempo para estudo, ter mais segurança de estudar elementos que terão vida longa;
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Valorização do tempo. Leva uns cinco anos para uma criança conseguir fazer o número 2 totalmente sozinha, sem surpresas. Cinco anos para uma tarefa tão simples. Hoje, é fácil pra mim entender ciclos de projeto de 2, 4, 10 anos. Leva tempo para aquilo que é valioso amadurecer. E a vantagem é que tudo que é feito tento o cuidadoso trabalho do tempo, resiste a ele;
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Habilidade de orientação. Quem se dedica a cuidar de uma criança pequena para valer inevitavelmente adquire a capacidade de não se incomodar tanto com decisões de profissionais mais jovens, melhora o tom de voz nas comunicações e vai lentamente aprendendo a aprender também com os que vieram depois;
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Capacidade de decisão mais pragmática. Embora eu reconheça que a paternidade juvenil tenha prejudicado um pouco minha capacidade de inovação eu com certeza me tornei muito mais eficiente e capaz de decisões mais equilibradas em quase todas as áreas da programação;
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Paciência.
- Amor. Ter filhos nos aproxima do afeto, da ternura e da compaixão. Como profissionais de tecnologia, somos pessoas, colaborando com muitas pessoas para criar soluções que serão usadas por outras pessoas. E trabalhar com pessoas, ouvir pessoas, se dedicar a um produto, tudo isso exige amor para ser feito com cuidado.
O Casamento
Toda minha trajetória só tem tido sucesso porque minha amada esposa sacrificou muito mais elementos da sua vida pessoal do que eu mesmo para cuidarmos da nossa família. Então tudo que aqui está tem valor para um ambiente de um casal, trabalhando junto para crescer junto e ao mesmo tempo viver um ambiente familiar rico, cheio de presença.
Mas conseguimos dentre muitas coisas que ela também mantivesse uma carreira forte e linda como professora certificada internacionalmente de Iyengar Yoga. Quem quiser acompanhar o trabalho dela, está aqui.
Conversar?
Este assunto, de manter uma carreira como programador ou programadora em um ambiente de pouca rede de apoio, em construção ainda de carreira e com filhos pequenos, é muito importante para mim.
Se alguém sentir vontade de uma conversa de uma hora via vídeo, para trocarmos algumas experiências, ser ouvido, ser um prazer. Basta me procurar no Twitter e me mandar mensagem no privado. Será uma alegria se puder apoiar a vida de alguém. Tem sido bem difícil para mim até aqui.